segunda-feira, 18 de maio de 2015

Cap. I

Tudo parecia normal enquanto cantavam “facas cegas, colheres dobradas” na sala. Dava a impressão de que nada tinha acontecido e que a vida deveria seguir sem perguntas ou alterações. Apesar de toda a agonia que aquilo causava, sentia-se estranhamente bem. As vozes deles, tão diferentes, tornavam a música ainda mais aconchegante. Guilherme dando um tom mais sério e Caio com sua voz fina de menino de “três anos, quase quatro”, como ele diria, comendo os “erres” das palavras.
Giovana tinha se distraído tanto com a cantoria e conversa deles enquanto mexia nas panelas que só quando estava quase terminando reparou que não alcançaria mais uma vez a meta das cinco cores. Torcia pra que Caio não reparasse.
Depois de abaixarem o volume da TV e lavarem as mãos, sentaram-se para jantar, os mais velhos cansados e o menino muito mais agitado do que deveria levando em consideração o horário. Contava detalhes do que tinha feito o dia inteiro na pré-escola e se sentia importante com a atenção que recebia de seus ouvintes.
Subitamente se endireitou na cadeira olhando para o prato e já era de se esperar que ele fosse começar a contagem das cores.
- Gio, não tem as cinco cores.
- Tem sim, amor. Se contar com o suco e a sobremesa.
Trocaram um olhar de cumplicidade seguido por um sorriso.
- E isso vale?
- Claro! Podemos mudar as regras, mas só de vez em quando.
O menino se animou e terminou o jantar, indo pegar uma taça de gelatina de maracujá na geladeira como sobremesa e comer na sala, assistindo o filme.
- O salário atrasou de novo, mas assim que sair eu te entrego a quantia do mercado. – Guilherme recusou a sobremesa, permanecendo sentado à mesa. O cabelo, já crescido até a altura dos ombros, incomodava às vezes o que o fez passar a mantê-lo preso, mas a franja sempre ficava à mostra. Giovana já tinha se acostumado. Achava extremamente lindo o tom quase platinado dos fios dele, tornava sua expressão angelical.
Na frente de Caio ele assumia uma postura mais tranquila, mas assim que o menino saía de cena Giovana via o quanto o irmão mais velho parecia esgotado do trabalho, das atividades domésticas e da preocupação com as dívidas.
- Não se preocupa. – sentada de frente pra ele, ela esticou os braços segurando nas mãos dele. – Tenho dinheiro guardado e vai ser o suficiente. Só não passei no supermercado porque saí muito tarde do trabalho.
- Mesmo assim. O dinheiro guardado é pra se você precisar numa emergência. O combinado foi que eu pagaria as contas da casa e você a escola do Caio.
- Mas eu já paguei a mensalidade da escola. Não se estressa com isso, depois a gente resolve. Você precisa de descanso, Gui.
Giovana se forçou a sorrir tentando melhorar o clima, o que conseguiu parcialmente. Ir deitar pensando na atual situação da família era estressante e uma das poucas formas de controlar isso tinha se tornado um vício. As consequências apareciam na manhã seguinte quando tinha que se dedicar mais tempo usando corretivos e bases faciais tentando diminuir a aparência das olheiras.

Resolveu que iria ignorar a vontade de levantar da cama e ligou o aplicativo do celular que reproduzia o som de chuva. Depois de muito insistir, o sono chegou.