Tudo parecia
normal enquanto cantavam “facas cegas, colheres dobradas” na sala. Dava a
impressão de que nada tinha acontecido e que a vida deveria seguir sem
perguntas ou alterações. Apesar de toda a agonia que aquilo causava, sentia-se estranhamente
bem. As vozes deles, tão diferentes, tornavam a música ainda mais aconchegante.
Guilherme dando um tom mais sério e Caio com sua voz fina de menino de “três
anos, quase quatro”, como ele diria, comendo os “erres” das palavras.
Giovana
tinha se distraído tanto com a cantoria e conversa deles enquanto mexia nas
panelas que só quando estava quase terminando reparou que não alcançaria mais
uma vez a meta das cinco cores. Torcia pra que Caio não reparasse.
Depois de
abaixarem o volume da TV e lavarem as mãos, sentaram-se para jantar, os mais
velhos cansados e o menino muito mais agitado do que deveria levando em
consideração o horário. Contava detalhes do que tinha feito o dia inteiro na
pré-escola e se sentia importante com a atenção que recebia de seus ouvintes.
Subitamente
se endireitou na cadeira olhando para o prato e já era de se esperar que ele
fosse começar a contagem das cores.
- Gio, não
tem as cinco cores.
- Tem sim,
amor. Se contar com o suco e a sobremesa.
Trocaram um
olhar de cumplicidade seguido por um sorriso.
- E isso
vale?
- Claro!
Podemos mudar as regras, mas só de vez em quando.
O menino se
animou e terminou o jantar, indo pegar uma taça de gelatina de maracujá na
geladeira como sobremesa e comer na sala, assistindo o filme.
- O salário
atrasou de novo, mas assim que sair eu te entrego a quantia do mercado. –
Guilherme recusou a sobremesa, permanecendo sentado à mesa. O cabelo, já
crescido até a altura dos ombros, incomodava às vezes o que o fez passar a
mantê-lo preso, mas a franja sempre ficava à mostra. Giovana já tinha se
acostumado. Achava extremamente lindo o tom quase platinado dos fios dele,
tornava sua expressão angelical.
Na frente de
Caio ele assumia uma postura mais tranquila, mas assim que o menino saía de
cena Giovana via o quanto o irmão mais velho parecia esgotado do trabalho, das
atividades domésticas e da preocupação com as dívidas.
- Não se
preocupa. – sentada de frente pra ele, ela esticou os braços segurando nas mãos
dele. – Tenho dinheiro guardado e vai ser o suficiente. Só não passei no
supermercado porque saí muito tarde do trabalho.
- Mesmo
assim. O dinheiro guardado é pra se você precisar numa emergência. O combinado
foi que eu pagaria as contas da casa e você a escola do Caio.
- Mas eu já
paguei a mensalidade da escola. Não se estressa com isso, depois a gente
resolve. Você precisa de descanso, Gui.
Giovana se
forçou a sorrir tentando melhorar o clima, o que conseguiu parcialmente. Ir
deitar pensando na atual situação da família era estressante e uma das poucas
formas de controlar isso tinha se tornado um vício. As consequências apareciam
na manhã seguinte quando tinha que se dedicar mais tempo usando corretivos e
bases faciais tentando diminuir a aparência das olheiras.
Resolveu que
iria ignorar a vontade de levantar da cama e ligou o aplicativo do celular que
reproduzia o som de chuva. Depois de muito insistir, o sono chegou.